O que faz uma biografia ser boa? - Dois livros e duas visões diferentes da homossexualidade

sexta-feira, novembro 10, 2017 0 Comments A+ a-


Uma biografia é um tipo de literatura muito específica. Há pouco espaço para inventos e ficções – quanto mais famoso o biografado mais as pessoas querem detalhes/dados/fotos do que ocorreu. Querem saber exatamente o que aconteceu e, se tiver alguma história sórdida no meio dos fatos, também não faz mal.
“Antes que Anoiteça”, é uma autobiografia com poucas fotos mas cheia de detalhes. Nela, o escritor Reinaldo Arenas retrata a sua vida antes, durante e após o regime cubano. Embora tenha começado apoiando Castro, Arenas logo passa a discordar da ideologia vigente e tensão entre escritor e governo é frequente, ainda mais por se tratar de um autor homossexual, já que os homossexuais eram perseguidos em Cuba.
Enquanto lia “Antes que Anoiteça”, senti falta de maior representação feminina. As menções a mulheres homossexuais não chegam ao número de dedos de uma mão, o que me levou a procurar algum livro que preenchesse essa lacuna. Foi aí que li “Flores Raras e Banalíssimas”.

Se a quantidade de fatos e a veracidade deles é o que faz ser uma biografia boa, então "Flores Raras e Banalíssimas" não deveria ser considerado um bom livro. A história, que busca retratar os 15 anos do relacionamento entre Elizabeth Bishop e Lota de Macedo, carece de fontes nos momentos mais cruciais da trama. As correspondências e agendas das personagens principais não são o suficiente para retratar essa história em primeira mão: os depoimentos que a autora do livro tem de amigos e pessoas que conviveram com o casal na época é que dão a tônica de boa parte do livro.
Entretanto, assim como "Antes que anoiteça", "Flores Raras..." também foi uma leitura que me impressionou muito. Os dois livros não poderiam ser mais opostos e, no entanto, acho os dois realmente bons.
Um dos aspectos que torna as duas biografias interessantes é o mesmo que também faz com que dialoguem entre si, o retrato da homossexualidade durante as décadas de 40, 50 e 60. Em "Antes que anoiteça" o retrato da repressão aos homossexuais é tão intenso quanto ao das aventuras sexuais vividas pelo narrador ao longo desse período. Muitos trechos podem ser até mesmo chocantes para os desavisados, mas é um retrato cru daquele período e daquelas pessoas, principalmente Arenas.

 "Flores Raras..." é muito mais discreto. Como relato contado por diversas fontes e não pelas duas protagonistas da história, o livro carece do acesso à intimidade dos personagens que há em “Antes que Anoiteça”. Mesmo assim, são justamente esses relatos que deram a resposta para a minha dúvida "como era vista a homossexualidade feminina nas décadas de 40, 50 e 60?" a resposta é que não era vista. Nenhum dos entrevistados sequer tinha ideia do relacionamento entre as protagonistas, até que o caso estourou na década de 90.
Nesse sentido, são dois livros com visões contrastantes da homossexualidade, embora tenham se passado, senão no mesmo espaço, no mesmo período. O primeiro há uma ostentação desse estilo de vida, apesar (e talvez em razão) de toda a perseguição. Já no segundo não há perseguição alguma mas os relacionamentos são muito mais discretos.
Isso torna “Antes que Anoiteça” melhor que “Flores Raras...”? De forma alguma, dentro de suas possibilidades são excelentes livros que cumprem o objetivo de contar a história de uma pessoa (ou pessoas) e, de quebra, dão um contexto histórico muito rico e interessante.
As pessoas retratadas facilitam para que seja assim. Os dois livros nos apresentam personagens interessantes e, acima de tudo, humanos. Não dá pra concordar e simpatizar com tudo o que Reinaldo (ou Elizabeth, ou Lota) faz no livro. Ainda assim, não dá para terminar qualquer um desses livros sem uma dose de simpatia (ou, ao menos, empatia) por esses personagens.
Acho que o que faz uma biografia boa é esse fator humano. Seja ela autobiográfica ou retratando apenas um período da vida de uma pessoa, considero uma obra nesse estilo boa quando consegue situar o leitor na vida das pessoas retratadas e fazer com que nos coloquemos na pele dele, com que entendamos seus dilemas e conflitos, mesmo discordando de suas atitudes.

Tanto "Flores raras e Banalissimas" quanto "Antes que anoiteça" parecem entender que essa empatia não vem de retratar heróis e heroínas mas seres humanos, com suas falhas e incertezas.

P.S.: Os dois livros tem filmes inspirados neles, mas não assisti. 

Nascida no interior de SP, formada em Publicidade e Propaganda, sempre gostou de dar palpites sobre filmes, séries, animes, livros e o que mais assistir/ler. Autora do Blog "Resenhas e Outras Cositas Más" (Miss Carbono) e "Coisas de Karol". No Twitter fala de política, séries e da vida (não necessariamente nessa ordem). Siga: @karolro


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